UTÓPICOS DISTÓPICOS

Texto de Jose Borbolla Neto

Perestroika
5 min readJun 28, 2017

Utópicos Distópicos | Ou porque o primeiro episódio da terceira temporada de Black Mirror pode ser sobre um futuro desejável.

Pessoas se avaliam mutuamente em toda e qualquer interação, gerando um sistema de classificação “inconsciente”, mas social e culturalmente sustentado, que as segrega em diferentes grupos, definidos, em última instância, pela “média das notas” que os indivíduos se atribuem com base em símbolos e signos socialmente construídos.

Engana-se quem pensa que com a expansão e o avanço tecnológico estamos trocando um mundo real, respeitoso e tolerante por outro falso e preconceituoso. Na maior parte da jornada da nossa espécie, em especial após a invenção da agricultura, criamos as mais diversas formas de segregação e escravidão. O preconceito é uma constante em nossa história. Faz parte da nossa natureza.

No passado, os critérios de separação estavam relacionados às tribos, nações ou religiões, enquanto hoje se tornaram mais sutis e socialmente “diluídos” e disfarçados: dos órgãos de proteção ao crédito ao carro que usa ou à roupa que veste. Do peso na balança à cor da pele. Todo pequeno desvio do que é considerado social e culturalmente “ideal” ou “bonito” é razão para receber uma “nota” mais baixa.

Não é preciso procurar muito para encontrarmos exemplos nos quais pessoas são impiedosamente julgadas e classificadas de maneiras “menos democráticas” do que aquela mostrada no seriado.

Carregamos no hardware do nosso cérebro a necessidade de nos sentirmos parte de um grupo. A seleção natural tratou de conservar esta característica porque a nossa sobrevivência enquanto espécie dependeu (e ainda depende) majoritariamente da nossa capacidade de colaboração em larga escala.

Em tempos de mídias digitais e conexões ininterruptas, sofremos de abstinência de aceitação na medida em que temos um “termômetro social” constantemente nos mostrando quantas pessoas leram ou curtiram nosso texto. O “risco da rejeição” se torna cada vez mais real na medida em que os minutos passam e ninguém curte a sua foto.

O efeito destas constantes microdoses de dopamina (enquanto aguardamos impacientemente a próxima notícia a surgir no nosso feed) são flagrantes: a Organização Mundial da Saúde informa que 18.2% dos americanos reportam ansiedade crônica, em face de apenas 3.3% dos nigerianos.

Talvez uma parte da explicação encontre-se nos números de usuários com acesso à internet nos dois países: 89% no primeiro contra 39% no segundo. A discrepância é ainda maior quando olhamos para usuários de smartphones: 72% dos cidadãos estadunidenses possuem este tipo de dispositivo. Apenas 28% dos nigerianos tem a mesma oportunidade.

Longe de querer estabelecer causalidade onde há apenas correlação, é difícil negar que um mundo cada vez mais hiperconectado potencializa os bugs em um hardware que mudou muito pouco ou quase nada nos últimos milênios: nosso cérebro ainda é o mesmo daquele caçador-coletor que andava nas planícies africanas há centenas de milhares de anos atrás.

Acrescente-se ao já complexo contexto o “efeito colateral” da narrativa neoliberal que dominou o mundo ocidental nas últimas décadas e reduziu nosso conceito de identidade, cidadania e política a meros atos de consumo.

Neste cenário, imaginar um mundo em que as pessoas são “julgadas” a partir de notas acumuladas no dia-a-dia pode ser animador: se atualmente você é mais ou menos respeitado de acordo com o carro que você possui ou com a marca que veste (ou, em outras palavras, com seu poder de compra), um futuro como aquele descrito em Black Mirror pode oferecer dados de “outras fontes”, distintas da sua conta bancária. Talvez uma maior diversidade, neste caso, possa ser benéfica. Será?

Um paralelo óbvio em nossa época é o Uber. Motoristas são bem avaliados independente do carro que possuem e utilizam a nota dos usuários como “filtro de segurança”. Do lado do cliente, a nota acumulada também tem “função social” importante, na medida em que fornece um elemento “objetivo” para que uma relação de confiança possa ser estabelecida, ao menos durante aquele trajeto.

Recentemente estive em Londres e pude viver uma situação curiosa que demonstra um lado positivo deste “sistema digital de julgamento mútuo” que o Uber popularizou. Sábado, 23h, aeroporto. Decidi chamar um Uber depois de tantas horas de viagem. Por uns 15 minutos nós nos desencontramos nos estacionamentos. Quando finalmente descobri onde ele estava, pedi desculpas e o agradeci por ter aguardado (confesso que entenderia perfeitamente se ele tivesse ido embora). Contrariando minhas expectativas, o motorista insistiu para que eu ficasse tranquilo, que na realidade ele que teria que se desculpar por não ter me encontrado antes, já que a minha nota no aplicativo era uma “garantia” de que eu era confiável.

O que este pequeno e desinteressante relato pessoal propõe, na minha visão, é que o acréscimo de uma “nova camada de realidade compartilhada” pode trazer efeitos positivos na maneira como julgamos uns aos outros, em especial quando se trata de uma relação/conexão nova entre desconhecidos. A hipótese de uma ampliação nos critérios de julgamento já traz consigo, por definição, uma ampliação no leque de possibilidades para todos os lados. Há efeitos negativos? Certamente, e o seriado os explora muito bem. Mas há também uma “externalidade positiva”, na medida em que indivíduos ganham novas oportunidades de transitar nas diferentes camadas sociais por elementos/habilidades/critérios menos dependentes do poder aquisitivo, religião ou cor de pele.

Confesso não me sentir muito à vontade com o futuro “hiperuberizado” que o avanço tecnológico oferece como possibilidade concreta. Mas o que mais me assusta é assumir uma “neutralidade tecnológica” e deixar que importantes decisões sejam tomadas exclusivamente por grandes corporações que controlam nossos dados pessoais.

Propor diálogos e discussões sobre o assunto não deve, portanto, ser encarado de maneira superficial como uma postura de incentivo ou crítica cega à tecnologia. É importante que fomentemos estes espaços, que tenhamos voz ativa neste processo. Precisamos participar da criação de novas narrativas que deem conta de descrever e conectar uma realidade cada vez mais fluida e veloz, que constantemente muda tudo ao nosso redor, incluindo os elementos constituintes da nossa identidade. Somos muitas versões de nós mesmos e qualquer sistema de classificação que não dê conta desta crescente complexidade estará fadado ao fracasso. E carregará consigo poucos caminhos alternativos para o preconceito e a segregação.

É nossa responsabilidade geracional acrescentar camadas de ética e política às conversas, sob o risco de nos tornarmos apenas a materialização de um capítulo trágico de uma história de ficção científica.

Black Mirror deixa claro que estamos mais perto disso do que podemos imaginar.

Jose Borbolla Neto é consultor nas áreas de Ciência de Dados, Marketing e Redes. Apaixonado por temas relacionados à educação, comunicação, neurociência, economia comportamental, sociologia e complexidade; Zé é também o idealizador e coordenador do curso “Da Lama ao Caos” da Perestroika.

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Escola de atividades criativas.

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