Sobre a importância do desconhecido

Perestroika
6 min readAug 24, 2018

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Pessoas contando sabiás e bem-te-vis nos lembram da importância de não pararmos nunca de observar e investigar o mundo

Me chamo Maria. Sou cientista.

Quando eu era criança, imaginava que ser cientista seria um conto de fadas em que o personagem principal era o Humboldt, andando pela floresta amazônica. Eu iria entrar como ele na floresta, com meus instrumentos de medida, um caderno de páginas amareladas, um lápis, uma borracha e um apontador — eu sou de virgem, então precisava ter um apontador. Munida destes instrumentos eu ia descobrir o mundo e tirar grandes conclusões sobre ele. Na minha fantasia, eu sabia desenhar muito bem, e fazia belas ilustrações de vários insetos esquisitos.

Mal sabia eu o que me esperava. Mas eu escolhi contar essa história para vocês por uma razão: por causa da minha fantasia de cientista, a minha vida de criança, adolescente e jovem adulta teve uma história, um objetivo. Passei horas lendo Sherlock Holmes. Essa narrativa por trás do processo investigativo, conversava muito profundamente comigo quando eu era criança, e me ajudava a enfrentar mesmo os momentos mais sofridos da minha vida (eu tenho dois irmãos mais velhos, então essa fantasia tinha que ser bem poderosa).

Hoje está em voga uma discussão muito importante sobre a ciência, e eu queria contar para vocês um pouco sobre ela. A pergunta que eu coloco é a seguinte: será que nós realmente precisamos da ciência? Realmente precisamos saber a sequência de bilhões de letras que compõe o genoma humano? Será que vale mesmo a pena pensar em como reviver os mamutes? A gente fica hesitante de ir morar em outra cidade, vamos mesmo querer hibernar em uma nave espacial até chegarmos em Marte?

Lembre-se, que se não fosse a ciência e a sua irmã mais bonita e estilosa, a tecnologia, nós não teríamos causado essa situação de desgraça que vemos no mundo hoje. Não teríamos algumas invenções delirantes, como gasolina, plástico, metais pesados.. Que vão consumindo os recursos naturais como se fossem pacmans famintos. Sem a tecnologia, a gente não teria a falta dela, não haveria diferença entre os países que a detém, e os que não a possuem. Sem a tecnologia, teríamos menos desemprego (é o que dizem). Será que, na verdade, não somos vítimas desse nosso Frankenstein? Num contexto mais niilista, será que vale a pena investir em antibióticos e vacinas, se isso só vai aumentar o número de humanos nesse planeta que já não aguenta mais humanos?

Eu não sei. Eu não sei a resposta a essas perguntas. E eu vim aqui dizer isso para vocês: os cientistas precisam de ajuda. Comecei contando a história da Maria criança querendo brincar de naturalista porque eu acredito que a investigação está na nossa natureza. Os humanos, sabe-se lá por quê, se vinculam profundamente à idéia de descobrir o novo, desbravar. Digo isso não só por causa da minha experiência infantil, mas porque recentemente eu tenho trabalhado em atividades de educação cujo principal objetivo é dar voz a esse profundo e visceral chamado humano. Você acha que as suas crianças não param quietas de jeito nenhum, não prestam atenção em nada? Dê para elas uma pergunta: “O que comem as corujas?”. Dê para elas o fascínio e o deslumbramento de uma mata tropical verde e intacta. Dê para elas o oceano desconhecido e infinito. Dê para elas os instrumentos, a pinça, o lápis e o papel e eles vão desenhar os insetos esquisitos.

Nós não somos vítimas da ciência, nós somos tarados por ela. Ela é a verbalização do nosso desejo de descobrir o mundo e nós mesmos. Somos tão tarados que a usamos como instrumento de poder. Isso cria um conflito que é o cerne do que eu quero deixar claro: delegamos a ciência aos cientistas e perdemos o controle da situação. Cientistas, fechados em seus laboratórios com tubinhos de plástico (plástico), deixando fluir suas perversões de poder, deixaram que a tecnologia se tornasse uma arma. Eu acredito que não podemos mais deixar isso se perpetuar. Sugiro que ampliemos o debate: vamos elaborar soluções coletivas para os problemas que a história humana criou nesses seus últimos séculos de História! Precisamos pensar mais no que hoje é chamado de “ciência cidadã”.

A idéia desse conceito é o seguinte: queremos desmanchar o muro da universidade. O mundo é um imenso laboratório, os humanos nasceram com a pulga da pergunta atrás da orelha e nós somos os grandes beneficiários do que hoje é chamado de “Era da Informação”. Vamos usar a internet para criar um imenso projeto colaborativo de pesquisa a nível global. Melhor ainda: vamos usar a internet para criar VÁRIOS projetos colaborativos. Seu negócio é ficar vendo borboletas? Existe uma comunidade de observadores de borboletas com quem você pode trocar figurinhas. Prefere ficar de olho nas estrelas? Um grupo de pessoas online quer fazer pela astronomia o mesmo que milhões de Galileus Galileis. Curte inteligência artificial? Use o Kaggle… E eu nem comecei a falar das aves…

A história do relacionamento dos humanos com os pássaros ao seu redor tem alguns capítulos tão fascinantes quanto a própria história da ciência. Qual foi esse momento tão intrigante da nossa trajetória como Humanidade em que decidimos parar de capturar as aves para comer ou para colocá-las em gaiolas e começamos a observá-las? Eu sei que não parece que esse momento aconteceu, mas me permitam um certo otimismo: eu acho que ele ocorreu. Coletivamente, lentamente, nós nos transformamos em grandes observadores de aves. Olhando para os nossos jardins, descobrimos espécies que estavam desaparecidas há décadas! Esperamos alegremente que elas retornem de suas migrações transcontinentais. Registramos o dia da sua chegada, o dia da sua partida. Nos perguntamos para onde elas vão e isso desperta em nós questões sobre o nosso próprio destino. Se você ainda não foi picado pela observação de aves, eu te convoco a sair de casa um dia de manhã cedo, nesse delicioso fim de inverno, e olhar ao seu redor.

O estudo das aves está sendo o grande protótipo da ciência cidadã. Mulheres e homens do mundo inteiro estão saindo às ruas e contando o número passarinhos que eles vêem por aí e anotando tudo o que encontram para depois postarem na internet (procure no Google por Wikiaves e eBird). Nós redescobrimos o cientista que mora dentro de nós.

E a ciência cidadã ainda vai além! Ela propõe que transformemos esses dados em tecnologia, em leis, em políticas públicas. Precisamos descobrir coletivamente como utilizar o fato de que sabemos o dia em que as aves voltam, depois de suas longas jornadas, para garantir que elas possam voltar para um lugar onde consigam descansar em paz. Convoco vocês a pensar em como transformar essas informações em medidas que nos ajudem a conter o grande monstro faminto industrial que nós mesmos criamos. Como transformar as nossas cidades, espaço que compartilhamos com milhares de espécies de animais, melhor para eles também? Vamos fazer um grande mix de borboletas, aves, astronomia e inteligência artificial para resolver esse maldito problema do aquecimento global!

Lembrem-se de que o grande desbravador do desconhecido que vive dentro de cada um de nós precisa do desconhecido para viver a sua história, para descobrir quem ele é, e quem ele definitivamente não é. Se nós destruirmos a natureza, mesmo na vaga hipótese de sobrevivermos, sobreviveremos humanos fantasmas, sem termos o fascinante desconhecido que tanto nos intriga.

  • Subversiva, criativa, sensível e do bem! Essa é a Perestroika

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Written by Perestroika

Escola de atividades criativas.

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