Os abortos imaginários
Uma em cada cinco fizeram e vão continuar fazendo. Muitas vão morrer.
Em 1998, cerca de 1 milhão de mulheres brasileiras fez um aborto induzido. Os formatos variaram: em clínicas, com remédios abortivos contrabandeados, com traumas voluntários, como quedas e socos, com substâncias cáusticas inseridas na vagina, como cloro e cal, e com objetos enfiados no útero, como arames, agulhas de tricô e cabides.
Vamos fazer um exercício de imaginação? Se eu tivesse engravidado, neste mesmo ano, estaria no segundo semestre da faculdade, teria um namorado, 18 anos, um feto de 8 semanas na barriga, nenhuma vontade de ser mãe e, o mais importante, R$ 1,5 mil. Seria fácil entrar pela porta da frente em uma clínica numa rua movimentada no Centro de Porto Alegre, com meus pais e meu namorado da época, para um procedimento permitido sem restrições em 56 países. O aborto por aspiração uterina a vácuo leva menos de 15 minutos. Não exige internações, a taxa de complicações é de 0,5% e não há dor.
Eu teria ido para casa, usado um absorvente para estancar o pouquíssimo sangue no dia seguinte e seguido a vida: faculdade, estágio, namorado. Não queria ter filhos naquele momento e teria sido uma decisão relativamente fácil de tomar, embora acredito que eu eventualmente tivesse chorado algumas vezes ao longo dos anos imaginando como teria sido. Um ano depois, eu teria visto em um telejornal local a clínica ser estourada pela polícia e o médico ser preso — as mulheres na sala de espera foram levadas para prestar esclarecimentos (desconheço se ficaram presas).
Alguns anos depois, o mundo era muito diferente. Mas quatro coisas não mudaram: no Brasil, o aborto permanecia proibido, salvo em situações como risco de vida para a mulher ou estupro; eu continuaria meio atrapalhada com métodos contraceptivos; e continuaria sem querer ter filhos — no entanto, teria engravidado novamente por uma falha ao tomar a pílula. Com R$ 3 mil no bolso, teria encontrado um médico famoso em Porto Alegre por fazer abortos por meio da amiga de uma amiga.
Se isso houvesse acontecido, pareceria o enredo de um filme: o profissional teria feito uma ecografia no consultório para averiguar a gestação e quanto tempo tinha (cerca de 10 semanas). A partir daí, em outro celular, combinaríamos como seria o procedimento — no começo da mesma noite, um motorista contratado por ele, em um carro preto, teria me apanhado no estacionamento de um shopping e nos levado até outra clínica mantida pelo médico, também em uma área central da cidade. Como já seria noite, não haveria mais ninguém no prédio comercial. Lá, o mesmo procedimento de 11 anos antes seria executado: sedação, aspiração, volta para casa.
Em 2013, alguns anos depois, o mundo tinha mudado mais um pouco. No Brasil, foi permitido o aborto de bebês anencéfalos (por decisão do STF em 2012). Com 33 anos, minhas chances de engravidar eram menores. Mesmo assim, eu engravidei sem querer, mas num cenário que estava tranquilo, estava favorável: eu ganhava melhor, tinha saído da casa dos meus pais e senti vontade de ter um filho, que nasceu lindo e saudável em 2014, e me tornou um clichê ambulante da mãe babona.
“Por motivos pessoais, tive que optar por esse procedimento. Sou contra, mas tive que ficar a favor e não mais julgo quem optar pelo mesmo.”
Depoimento no site abortivo.org
A proibição do aborto no Brasil não impede as mulheres de interromperem a gravidez. Mulheres que abortam não são monstros sem coração. São apenas mulheres — uma em cada cinco brasileiras, segundo estatísticas extraoficiais. Reportagem de O Globo de 2014 traz dados do estudo “Magnitude do abortamento induzido por faixa etária e grandes regiões”, indica que, em 2013, foram 205 internações decorrentes de abortos no país, sendo que 154.391 por interrupção induzida. “Mas como nem sempre isso é necessário, o estudo estima que o número de abortos induzidos é quatro ou cinco vezes maior do que o de internações. Com isso, é possível calcular que o total de abortos induzidos em 2013 variou de 685.334 a 856.668. No entanto, segundo dados do Ministério da Saúde, foram apenas 1.523 casos de abortos legais (por estupro, ameaças à saúde materna e anencefalia fetal) no período”, diz a reportagem, completa aqui.
Em 2015, pela primeira vez o IBGE fez uma estimativa sobre o aborto no Brasil. A pesquisa indica que 8,7 milhões de brasileiras entre 18 e 49 anos fizeram ao menos um aborto na vida — e o instituto crê que os números são muito inferiores à realidade, já que o código penal brasileiro prevê prisão entre 1 e 3 anos para mulheres que interrompem a gravidez sem ser pelos motivos previstos em lei.
O site abortivo.org se propõe a ajudar mulheres a abortar — mas sem vender medicação ou indicar serviços, apenas oferecendo suporte para dúvidas sobre o procedimento ou jurídicas. Mantido pela entidade canadense Cloud Choice Health Corporation, o portal tem uma área de depoimentos que já soma 111 páginas e 2750 respostas. As histórias se parecem: mulheres que não pretendiam engravidar por motivos diversos — financeiros, emocionais, de saúde (o trecho destacado acima foi extraído dos depoimentos). Os procedimentos também — em geral, os depoimentos são de mulheres que usaram o Cytotec, um medicamento para úlcera muito eficaz em provocar o aborto. Aí que mora o problema: no Brasil, o Cytotec — ou misoprostol — tem a venda proibida e o uso restrito a hospitais. Então, a esmagadora maioria das mulheres recorrem ao contrabando — e muitas pagaram entre R$ 700 e R$ 1 mil para receber pílulas falsificadas — e não raro precisam correr para um hospital para finalizar o aborto com uma curetagem e evitar infecções.
Enquanto isso, nos países vizinhos, o cenário começa a mudar. No Uruguai, o aborto para residentes já é permitido há seis anos. No Brasil? As leis não apenas não evoluem como têm chances de retroceder. Ano passado, uma PEC queria restringir o aborto inclusive em casos de estupro.
Outra azarada um dia teria rompido uma camisinha, tomado a pílula do dia seguinte e, novamente engravidado. Agora, sem nenhuma clínica em Porto Alegre — as que existiam foram estouradas e os médicos, presos. Ela teria encontrado uma santa alma que vendia os Cytotecs reais e feito o procedimento em casa, sentido uma dor danada e ido ao hospital finalizar o aborto.
Eu não preciso me preocupar. Sou branca, classe média e tenho dinheiro, informação e contatos. Assim, num azar, poderia cuidar tranquilamente do meu filho, que só tem a mim — porque o pai dele o abortou há alguns anos, sem sofrer nenhuma punição, quando ele nasceu.
Ainda bem que tudo isso é só imaginação, não é mesmo?
- Subversiva, criativa, sensível e do bem! Essa é a Perestroika