Não aliso, nem chapo

Perestroika
4 min readOct 5, 2018

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Violet Jones tem 8 anos e está em um clube. Ela está de pé, usando um maiô e admirando a piscina. Em seus olhos dá para sentir o desejo de pular na água como as outras crianças. Enquanto ela devaneia com um mergulho, um menino branco, já dentro da piscina, lança o desafio para saber quanto tempo ela aguentaria ficar sem respirar debaixo d’água. Violet hesita, mas num ímpeto, ela pula. Quando emerge o garoto que havia a desafiado ridiculariza o cabelo dela. Violet alisa o cabelo. Violet é uma criança negra que alisa o cabelo. Quando em contato com a água o liso dá lugar ao crespo. E Violet vira motivo de piada. Essa é uma das cenas iniciais da mais nova produção da Netflix, o filme Nappily Ever After (Felicidade Por Um Fio). Já adulta, Violet torna-se uma publicitária de sucesso, mas obcecada por sua imagem, especificamente, pelo cabelo.

https://www.youtube.com/watch?v=EZOwfX3bmzQ

Eu era a Violet Jones

Não lembro se era mensalmente ou a cada três meses, o que tenho muito nítido em minha memória era eu estar em um salão de beleza. Enquanto minha mãe fazia as unhas, eu era sentada em uma cadeira em frente ao espelho, por ser muito pequena (eu tinha uns 5 anos) era colocadas umas almofadas para eu ficar mais alta e o trabalho da cabeleireira não ficar tão difícil.

Pela foto do avatar dá para ver que sou negra, meu cabelo é crespo. Bastante volumoso. Não, não é o cacheado. E eu tenho diversos tipos de crespo na cabeça. E essa diversidade que hoje eu amo, nos anos 1990, era um problema, um verdadeiro pesadelo.

A estética negra sempre sofreu ataques, sempre fomos motivos de piada pelo formato do nosso nariz, pelo tamanho de nossos lábios e pelos nossos cabelos. Sempre fomos considerados feios, porque os olhos de todos sempre estiveram voltados para o padrão eurocêntrico de beleza. Ou seja, pele clara, olhos claros, lábios pequenos e cabelos lisos, lisíssimos.

Eu usei produtos químicos para ~~abrir meus cachos~~. Esse procedimento não só não abriu cacho nenhum, como mudou a coloração do meu cabelo, deixou ele fraco a ponto de começar a cair. Tudo isso aos 5 anos.

Aos 8, já estava alisando meus fios. Fui lisa da infância até os meus 23 anos de idade.

Desde criança criei uma preocupação quase doentia com meu cabelo. Todas as minhas fotos de praia na infância eu estou de cabelo preso, porque, no litoral, eu não tinha acesso ao secador de cabelo. Na escola, quando eu praticava exercício, era um verdadeiro drama, porque meus cabelinhos da nuca já começavam a encaracolar e aquilo era tudo o que eu não queria. Não queria ser eu, não queria ter cabelo crespo. Queria ter cabelo liso como todas as atrizes, escritoras e cantoras que eu gostava, porque todos achavam que elas eram consideradas bonitas e inteligentes. Eu não via mulheres parecidas comigo na televisão, não li mulheres negras na escola ou faculdade.

Se eu não me via, não me reconhecia. Não me valorizava e, o pior, me odiava.

A téorica estadunidense, bell hooks, no texto Alisando o Nosso Cabelo mostra como a autoestima da mulher negra está ligada especificamente ao cabelo.

“Apesar das diversas mudanças na política racial, as mulheres negras continuam obcecadas com os seus cabelos, e o alisamento ainda é considerado um assunto sério. Por meio de diversas práticas insistem em se aproveitar da insegurança que nós mulheres negras sentimos a respeito de nosso valor na sociedade de supremacia branca. […] parece haver um consenso geral sobre a nossa obsessão com o cabelo que, geralmente, reflete lutas contínuas com a auto-estima e a auto-realização. Falamos sobre o quanto as mulheres negras percebem seu cabelo como um inimigo, como um problema que devemos resolver, um território que deve ser conquistado. Sobretudo, é uma parte de nosso corpo de mulher negra que deve ser controlado. A maioria de nós não foi criada em ambientes nos quais aprendêssemos a considerar o nosso cabelo como sensual, ou bonito, em um estado não processado.”

Deixa a madeixa balançar

O racismo manifesta-se das mais diferentes formas. Ele é estrutural e estruturante em nossa sociedade. O racismo faz que a população negra desenvolva um auto-ódio muito grande em relação à própria imagem. Faz com que a gente busque uma beleza que não nos é natural, isso gera frustração e baixa autoestima. A reviravolta que acontece na vida de Violet e que aconteceu na minha, quando iniciado o processo de transição capilar, não é fácil. Uma galera olha feio, uma outra galera incentiva a jornada. A transição capilar demanda tempo e paciência.

Mas nesse período em que damos adeus ao padrão estético imposto, finalmente, nos reconhecemos, nos aceitamos e nos amamos como somos. É um momento de autocuidado e autoconhecimento que começa pela cabeça, pelos cabelos e atravessa nossa existência por completo.

  • Subversiva, criativa, sensível e do bem! Essa é a Perestroika

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