NUNCA É SÓ UM ANÚNCIO Luciano Braga
Esses dias estava passando pela rua e um anúncio na traseira de um ônibus me chamou a atenção. Era um anúncio de uma bala, bem simples. Uma foto da embalagem e a chamada “Gostoso como ter amigos”.
“Ué”, eu pensei. Li de novo e era isso mesmo que estava escrito. O anúncio comparava o gosto da bala com uma amizade. “Obviamente isso é uma mentira”, foi meu próximo pensamento.
Depois de estranhar um pouco, comecei a discutir internamente sobre essa chamada, se era legalzinha, bonitinha, publicitária, ou se era uma mentira mesmo.
Na verdade era uma mentira, isso estava bem claro pra mim. Não há bala no mundo, por mais gostosa que seja, que chegue minimamente perto de uma amizade. Não sei vocês, mas todos meus amigos são MUITO melhores que uma bala, que qualquer comida e que qualquer objeto. Uma vez alguns deles me “sequestraram” e me levaram para o Carnaval com eles. Eu estava meio sem grana e eles todos iam ir, e como eles não queriam ir sem minha presença, invadiram minha casa, arrumaram minha mala e ficaram esperando eu dizer sim. Eu acabei aceitando e no fim foi um Carnaval muito irado. Que bala no mundo faria isso?
Mas eu precisava definir se era uma mentira inocente ou se era um ultraje a todos meus amigos. Como publicitário, eu sei que a publicidade se vale de comparações, analogias e ludicidades para tornar seus produtos mais incríveis, só que por algum motivo que não sei muito explicar, essa chamada específica me bateu.
Talvez seja pelo tipo de conteúdo que venho estudando ultimamente. Pra citar um exemplo, esses dias fui tocado por um vídeo do Oliviero Toscani no Roda Viva. Oliviero Toscani foi o fotógrafo e diretor de criação responsável pelos controversos e provocativos anúncios da Benetton nos anos 80 e 90. Ao invés de vender roupas nos anúncios, a Benetton adotava uma abordagem chocante, trazendo para jornais, revistas e outdoors assuntos como mazelas da guerra, morte, aids, quebras de tabus e mil outros casos.
Para ele, a publicidade que vende para o mundo uma família Doriana, sempre feliz e linda, é um desserviço para a humanidade. Uma marca de carro que não toca no assunto “o carro é uma ferramenta que pode destruir uma vida” e prefere ficar mostrando o carro passando lindamente por montanhas austríacas, está sendo omissa. Está, também, prestando um desserviço para a humanidade. Mas nessa entrevista, não é isso que os outros da mesa pensam. E Oliviero acaba sendo atacado e questionado meio que durante toda a entrevista.
-Vocês acham que o papel de uma empresa privada seja o de responsabilizar-se pela moral e a consciência social?
- E porque não? Por que uma grande empresa estaria acima da confusão, fora do mundo?
Trecho do livro “A publicidade é um cadáver que nos sorri”, do Oliviero Toscani.
Eu concordo com o Oliviero. Ao meu ver, as empresas fazem parte da comunidade em que elas estão. E a publicidade é a forma que elas têm para conversar com as pessoas ao seu redor. Não existe a sociedade, e numa bola separada, as empresas. Marcas E pessoas fazem o nosso mundo. Pessoas físicas E jurídicas. Não há separação.
Logo, se estamos todos no mesmo barco, não tem porque um lado agir de uma forma, e o outro de outra. O mundo precisa de todo mundo. Não é papel só das pessoas que tem o papel de serem socialmente responsáveis por como se comunicam. Não são apenas as pessoas que tem que apontar o dedo para os erros, disparidades e desigualdades que acontecem em nossa volta. Não são as ONGs que tem que chamar a atenção para o problema do álcool e direção. São as marcas de carro TAMBÉM. E não somente com uma frase no final de um anúncio falado numa velocidade sobre-humana (sebebernãodirija).
Se as marcas fazem vista grossa para algo, elas estão se omitindo como cidadãos responsáveis por como o mundo funciona. Assim como quando as pessoas também se omitem falando “ah, política é muito chata, não me importo com isso” ou “foda-se, vou jogar o lixo no chão mesmo”.
Responsabilidade do privilégio
Marcas são um grupo de pessoas com um objetivo/sonho/propósito em comum. E o que elas comunicam para o mundo deveria ser aquilo que as pessoas que fazem a marca, acreditam. Mas o que acaba acontecendo é que aquilo que sai pro mundo é definido por uma equipe de marketing junto com uma agência que não faz parte dos objetivos/sonhos/propósitos da marca.
Elas precisam se comprometer. Precisam entender que estão dentro da rede, da bolha, do barco. Precisam entender que aquilo que elas falam, de uma forma ou outra, ajudam a moldar o pensamento da sociedade. Alguém com muita influência como o Trump, por exemplo (bem extremo, por sinal): quando ele fala algo, mesmo sendo uma mentira, muita gente acredita. As marcas também tem influência, seguidores, impacto. Um anúncio atrás de um ônibus atinge diariamente milhares de pessoas. Essa mensagem importa, não?
E num momento em que as fake news explodem por aí, que a esquerda e direita cada vez mais se distanciam, que o planeta corre enorme perigo e a intolerância, desigualdade e ódio apenas crescem, essas mensagens importam ainda mais.
O que sua marca fala para o mundo? Ela replica antigos clichês ou traz para a conversa valores coletivos alinhados com o mundo que queremos ver? Ela mostra um mundo que não existe, com fotos de banco de imagem e famílias dinamarquesas, ou mostra a realidade como ela é? Ela quer começar conversas ou impor comportamentos? Ela apenas vende qualquer coisa ou tenta elevar o nível de consciência da humanidade?
Não sei qual a resposta certa, não acho que tenha. E nem que apenas um desses caminhos é a solução. O que eu sei é que as marcas tem que ter responsabilidade por aquilo que falam. E se elas se omitem, que arquem com isso e não reclamem de como o mundo está depois.
Existe um conceito chamado Responsabilidade do Privilégio. Ele fala sobre a responsabilidade que temos por ter acesso a algo, por ter privilégio de ter algo que a maioria não tem. As marcas, com suas verbas de mídia, com seus espaços publicitários, tem o privilégio de falar com muita gente em pouco tempo. Logo, elas têm a responsabilidade sobre como elas utilizam todo esse potencial.
Ontological Design
Existe um oooutro conceito tão interessante quanto esse que é o de Ontological Design, que já falei algumas vezes na newsletter da Shoot. Esse conceito basicamente diz que tudo que a gente cria, cria a gente de volta.
Isso acontece porque, antes de criar qualquer coisa, a gente tem que imaginar o comportamento que aquilo vai gerar. Ou seja, a gente imagina que as pessoas querem fazer posts de até 140 caracteres. Daí a gente criar o Twitter, e a profecia se realiza, as pessoas começam a tuitar. A gente imagina que as pessoas querem usar o relógio no pulso, então criamos uma pulseira para ele, e a profecia se realiza.
Entrando no campo psicológico, se criamos anúncios e mais anúncios, por todo o mundo e em todos os formatos, que estimulam o consumismo, as pessoas se tornam consumidores ferrenhas.
Fica a pergunta, que comportamento queremos que aconteça no mundo com aquilo que estamos criando? Quais profecias seriam massa que se realizassem? E quais não devem mais acontecer?
Lembra da balinha?
Acho que ainda existe sim espaço para a ludicidades e analogias. Mas se a comunicação das marcas não só anunciar, mas também ajudar a aumentar o nível de consciência das pessoas, lindo! Pode falar que amizades são boas, que a bala é boa. Mas colocar as duas coisas no mesmo saco pra mim não faz sentido. Colocar um filtro de Instagram no mundo não leva ele pra frente.
Campanhas que tocam em feridas, que despertam para a tolerância, que quebram preconceitos, clichês e tabus, não são apenas bem-vindas, mas necessárias.
“Ai Braga, mas é só uma chamada, só um anúncio”. Pois é, mas a cada post no Instagram, cada vídeo no Youtube, cada anúncio em revista, cada post em blog, cada programa de rádio, uma cultura é construída.
Faz sentido? Opinem aí nos comentários :)
beijos ❤
Luciano Braga,
Shoot The Shit, 333 Páginas para Tirar Seu Projeto do Papel e professor na Perestroika.