Meus mais sinceros votos de um 2018 bem pior

Perestroika
4 min readNov 27, 2017

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2018 vai ser pior? Bom, para quem acha chato ouvir, ler, pensar e falar sobre coisas como direitos humanos, gênero, racismo e classe, então vai, e muito. Porque não falar sobre esses assuntos não é uma estratégia para 2018. As vozes que reverberam essas pautas não serão silenciadas. Então, para quem não gosta de ouvir o que não quer, 2018 vai ser bem pior.

Mas pode não ser pior. Depende da gente. Sim, da gente, especialmente de quem não gosta de ouvir falar dessas coisas. Porque aí vai uma perspectiva, e essa perspectiva é a de quem já fala, e muito, sobre esses temas: não é gosto o que me faz falar sobre elas, não.

Quem é que gosta de saber que mulheres — cis e trans, lésbicas, bissexuais, hétero, homens trans, homens gays, galera intersexo e qualquer um que não caiba nas definições das normas rígidas de gênero — sofrem violências muitas vezes fatais por conta disso? Certamente não quem é alvo frequente dessas violências.

Quem é que gosta de saber que a solução para masculinidades tóxicas, para muito do paternalismo e da objetificação de mulheres, bem como do machismo e da misoginia, está primordialmente nas mãos dos homens? Os homens sabem que têm essa responsabilidade? E dá neles gosto essa ideia? Não sei. Mas sei que gosto, para certas coisas, não interessa.

Não interessa se gosto ou não de saber que o conforto da minha ignorância e silêncio me fazem conivente com o racismo estrutural. É fato. O conforto de não precisar ouvir sobre o racismo que não sofro é um privilégio que tenho por ser uma mulher branca, assim como o conforto de não precisar ouvir sobre machismo é um privilégio dos homens, especialmente os heterossexuais. O conforto da ignorância e do silêncio dos homens os faz coniventes com o machismo estrutural.

O conforto de não pensar na fome é privilégio de quem come. É privilégio ter acesso a lugares de conforto e dignidade, seja física ou mentalmente. E quanto maior o privilégio, mais difícil enxerga-lo. Justamente porque o privilégio é tão confortável e gostoso…

Questões estruturais e sistêmicas não se resolvem magicamente, é preciso trabalhar rumo à mudança. E quando se trata de mudança acerca de opressões letais, já sacamos que falar sobre elas é uma estratégia de preservação da vida. Então, para quem não gosta de participar de discussões sobre o direito à vida digna de todos quando estas discussões confrontam seus próprios privilégios, 2018 vai ser pior.

Sabemos que não é possível exigir que todas as pessoas queiram participar de certas discussões. E olha que nem eu, que trabalho justamente com essas questões, e sou declaradamente devota ao diálogo, consigo ou quero sempre fazer o que prego. Mas é preciso tentar, sempre. Por que? Porque é preciso escutar.

Escutar é o mínimo que se pode fazer pelo outro, e quanto mais marginalizado este outro, mais necessária se torna a escuta de quem tem privilégios que este outro não tem. O outro tende a saber de si e de sua experiência melhor do que nós. Assim, se o direito à vida é de nosso interesse, também o é a vida do outro. É de interesse o que este outro aponta como prejudicial para sua vida, especialmente quando é no sentido de demandas por direitos. A escuta, sobre questões de vida digna e risco de morte, tem que ser ativa, não passiva. Quem não escuta já está desrespeitando.

Certos assuntos têm caráter de urgência, e é bastante preocupante que debates sobre eles sejam considerados chatos, ou que tê-los, ou não, seja pautado por uma questão de gosto. Chato é estar à mercê da violência. Disso, ninguém gosta.

Então 2018 vai ficar pior, sim, para quem não quer ouvir nem discutir assuntos chatos por causa de gosto. Esses assuntos não têm mesmo nada de gostoso. São sobre violência, quer se goste disso ou não. Quem por conta deles sofre, gosta ainda menos desses assuntos. Mas quando é questão de vida ou morte, falar é o primeiro passo na direção da mudança. E eu, pelo menos, vou seguir falando, e refletindo cada vez mais para argumentar cada vez melhor. Assim como vou seguir me esforçando para ouvir cada vez mais sobre meus próprios privilégios, ainda que isso não me dê gosto, ou me deixe bem desconfortável.

Eu queria mesmo conseguir falar sobre essas coisas de formas gostosas e simpáticas, bem suave, bem baunilha. Talvez até mais engraçadas, para ver se isso dá a esses assuntos um outro gosto. Então lembro que não tem graça, simpatia ou suavidade na violência, e que não é possível fazer temas tão duros serem gostosos, nem mesmo palatáveis.

Assim, para quem reluta em experimentar novos sabores, para quem foge do desconforto do amargo, e do desgosto do azedo porque pode, porque tem o conforto do privilégio de não ouvir, desejo que em 2018 acostumem o paladar. Pois ano que vem não vai ser nada gostoso. E vai ficar bem pior.

Joanna Burigo, Mestre em Gênero, Mídia e Cultura pela LSE, fundadora da Casa da Mãe Joanna, colunista do site da Carta Capital e professora da Perestroika.

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