Isto é barro

Perestroika
4 min readSep 27, 2018

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Trabalho no bairro com o maior preço por metro quadrado de Porto Alegre: são R$ 6.874,48, em média.

Uma tarde, em um dos poucos dias de sol com que Porto Alegre tem nos contemplado, desci a pé pra casa, a pouco mais de um quilômetro — a cada passo ladeira abaixo, o metro quadrado vai na mesma toada e dá uma reduzida no preço, mas isso não vem ao caso para a nossa história.

Foi na saída do meu trabalho que vi uma mulher, passada dos 60 anos, provavelmente, carregando sua bolsa e um saco de ração de cachorro. De 15 quilos. Na cabeça, tentando equilibrar o peso.

Corri até ela, me ofereci pra carregar o saco e viemos conversando pelo caminho. Ela me contou que é do interior do Estado, empregada doméstica em um apartamento por ali e que mora no segundo metro quadrado mais barato da cidade: R$ 2.878,37.

A patroa, dona de três lojas em shoppings da cidade, doa todo mês a ração do cachorro pra ela. Um bom gesto, a ração está cara para quem mata cachorro a grito.

Não carreguei o saco de ração porquê sou um poço de bondade, mas sim porque era uma mulher de porte físico mais frágil que o meu, carregando peso. Porque bastou olhar pra ver que ela, provavelmente, ia longe com aquele saco. E foi. Eu a deixei na parada do seu ônibus, que costuma demorar pra chuchu. Ela e um puta saco de ração.

Fiquei pensando: cara, por que a chefe dela não deu uma carona pra casa? Ou pagou um Uber?

Uns dias depois, meu filho veio com um papo que a gente só vê em fanfic de internet. Não lembro mais do contexto, mas ele pediu o lápis cor de pele.

- Mas qual cor de pele, filho?

- Da sua, mãe.

- Mas tem muitas cores de pele. Não tem como saber qual é.

- Eu não sou cor de pele, mãe. Eu sou cor de tronco. Eu sou marrom.

Opa. Eu falei a infância toda em lápis cor de pele, afinal, o lápis era da cor da MINHA pele, da pele de quem eu tinha por perto e era evidente — cor de pele. Mas depois de adulta e bem antes de ter filho, aboli esse termo da minha vida, justamente, por perceber lendo, entendendo, o óbvio: que não existe a cor de pele.

Então, ele deve ter ouvido isso na escola. E se conformado: “ok, eu não sou cor de pele. Então, eu sou como essa árvore, eu sou cor de tronco”. Com mais ou menos dor ou mais ou menos constrangimento, não sei. Mas eu fiquei naquele misto de coração partido e fúria.

Fiquei pensando: cara, por que as pessoas não aboliram esse termo tão excludente?

A moralzinha das duas histórias é uma só: a posição de privilégio, de classe, de raça, de gênero torna o outro invisível (veja que eu ia dizer “nos torna cegos”, mas lembrei de um amigo, cego, que pediu que parássemos de usar cego como sinônimo de ignorante. Parei).

Pra gente, a questão do outro simplesmente não existe. Porque não é perceptível aos nossos sentidos.

Dá um trabalhão perceber o outro como pessoa, como indivíduo com questões que não fazem parte do nosso dia a dia. Se a patroa em questão compra um saco de 15 kg de ração, ela possivelmente coloca no porta-malas do carro e leva pra casa, tendo o transtorno de carregar por uns 20 metros. Um lápis bege é cor de pele pra 98% dos alunos da sala. Sempre foi um lápis cor de pele.

Mas a gente precisa ver o outro como pessoa, repleta de músculos, nervos, sangue e dramas, e muito mais importante que isso, ver que o mundo em que o outro anda se parece muito com o nosso à primeira vista, mas é uma realidade paralela muito diferente.

Sim, esse é um texto muito mais sem graça que o Isto é água, do David Foster Wallace. Por isso, se leu, leia de novo. Se não leu, o faça agora.

Tem gente aí, as minorias que deveriam se submeter, segundo a agenda de certos candidatos, que está aterrorizada, fazendo um pedido de socorro. Pra muitos de nós, seria só mais um governo careta. Pra outros, é questão de sobreviver.

  • Subversiva, criativa, sensível e do bem! Essa é a Perestroika

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