Criatividade enlatada
*Qual a criatividade que estamos criando?
“Somos todos criativos”, “criatividade não é um dom é um habilidade que pode ser treinada”, “métodos e processos para a criação”.
Essas são frases que embrulham meu estômago toda vez que eu vejo, não porque eu acho que elas estão erradas, mas pela saturação absoluta desse tipo de pensamento e o lugar comum que isso se tornou. É como se alguém tentasse me dar uma colher de sopa de açúcar depois de ter comido um quilo sorvete.
Têm coisas que a gente repete tanto para gente mesmo que elas perdem o sentido e a gente acaba naturalizando-as ao invés de questioná-las. A publicidade funciona muito desse jeito. Ela é uma das culturas responsáveis por transformar o ser da criatividade em frases de parachoque.
É importante analisar essas frases, não para desqualificá-las no sentido de dizer que estão erradas, mas, sim, tentar entender qual é o tipo de criatividade que essa narrativa está construindo.
Vamos começar pelo começo: Como assim “qual tipo de criatividade”? Não existe só uma?
Não. E eu não tô querendo aqui resgatar outro tipo de pensamento saturado e remeter isso a alguma qualidade neurológica. Criatividade é uma palavra vazia de sentido, isso porque ela pode significar o que eu quiser, ou seja, toda vez a que definimos como algo estamos ativamente criando esse algo.
Quando nos perguntamos o que é criatividade, estamos buscando a essência desse conceito algo que o define em sua totalidade, uma verdade última. O grande problema dessa busca é que ela é um beco sem saída. Criatividade pode ser entendida como um conceito, mas isso a torna artificial, manipulável e a faz estar a serviço de quem a conceitua. Portanto, deixemos de pensar a criatividade enquanto conceito e olhemos para ela como verbo. O conceito é etéreo, inatingível e místico e faz com a que essa palavra ganhe um status de superpoder. Enquanto o criar (verbo) é algo mundano e não tem o mesmo charme do que ser um criativo.
A criatividade, enquanto ideia, está a serviço do status do fetiche, concede àquele que é reconhecido como um criativo poder, e, no final, é isso que importa. Logo, questionar essa conceituação é em si uma pequena revolução e devolve o poder para todos. Afinal, a cada passo que a gente dá, estamos criando o caminho a nossa frente.
No contraponto da ideia essencial de criatividade, encontramos a possibilidade de defini-la como uma habilidade, porém, devemos nos atentar a outra armadilha que é o discurso técnico sobre a criatividade. É aquele que diz que a criatividade é algo que pode ser gerido e treinado, que ela pode ser reduzida a um método, processo ou habilidade.
Essa perspectiva pode enganar, pois acredito que ela é diferente da ideia da criatividade como um dom, mas a própria noção de habilidade nasce de uma essência e, de novo, reduzimos e criamos. Só trocamos a perspectiva do dom pela do treino.
Essa ideia do treino está muito associada ao que se chama de discurso da técnica e dá à criatividade o lugar de algo que pode ser produzido, mas a pergunta a se fazer é: qual é a criatividade que esse discurso produz?
São dois efeitos principais: o primeiro é que essa é uma criatividade que está a serviço da produção da entrega do resultado. Aqui o que se está produzindo não é algo novo, mas, sim, algo eficiente ou mesmo eficaz. Esse processo é incapaz de produzir ruptura, ele entrega continuação e repetição, seja em pequena escala otimizando processos já existentes, seja em grande escala continuando um processo histórico, independentemente, que se troquem os tipos de burocracia.
Outro ponto que está intimamente ligado à noção de criatividade como habilidade é que ela pode ser desenvolvida e alcançada através de um processo ou método. É importante ressaltar aqui que, se dependermos somente disso para que a criatividade se crie, estamos falando de algo extremamente limitado. Já que a única criatividade que pode ser desenvolvida frente a um processo é a criatividade que o processo pretende criar, ou seja, ela é algo padronizado e reprodutível e logo deixa de ser criativa.
O que eu estou tentando explicitar nesse texto que, (mea culpa) pode parecer um pouco prolixo e etéreo, é que devemos nos atentar para a possibilidade de enlatamento da criatividade e sermos críticos de quem a vende como produto, se o argumento é uma solução definitiva para alcançá-la.
Existe uma abertura a possibilidade de relação com mundo e com as coisas para além das possibilidades criadas pelo escopo da acentuação da técnica ao longo do período da modernidade. Este é o resgate do olhar poético.
Dentro do olhar poético as coisas não precisam ser esclarecidas ou dissecadas, é possível se compreender a criatividade sem tentar defini-la, pois ela é algo que se mostra à medida que se esconde. Esse é um espaço onde as perguntas são feitas e as respostas não necessariamente chegam, o que é já um contraponto radical a nossa necessidade de uma soberba de racionalização.
A conclusão dessa bagunça é que a criatividade não se define e sua morada está no olhar poético para vida, não no campo técnico científico que, por mais que nos dê um tipo de criatividade, nunca vai nos entregar um visão completa. Portanto, se sua busca é pelo criar o caminho para encontrá-lo é pela dúvida, incerteza, pela loucura e pelo vazio. Não na esterilidade do campo da produção e da entrega.
Isso gera uma angústia enorme, pois toda nossa sociedade é construída no esforço do silenciamento da dúvida, já que ela é algo extremamente perigoso, pois pode gerar uma não complacência da pessoas, nós só podemos ser domesticados nas nossas certezas e, por isso, precisamos abandoná-las.
- O André, autor deste texto, é o atual curador do curso YAKUZA que vai rolar em São Paulo em setembro. Se você quiser saber mais informações: chega mais!
- Subversiva, criativa, sensível e do bem! Essa é a Perestroika