Carta de Hemingway a Fitzgerald

Perestroika
5 min readMay 30, 2016

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Ernest Hemingway enviou uma carta a Scott Fitzgerald dando feedbacks e dicas de escrita ao então jovem escritor. Será que podemos aproveitar alguns destes conselhos?

Caro Scott,

Gostei e não gostei. Começa com aquela descrição maravilhosa da Sara e do Gerald (droga, o Dos [Passos] levou o livro e eu fiquei sem referência. Portanto, se eu errar…). Depois você começa a brincar com eles, fazendo-os vir de onde não vieram, transformando-os em outras pessoas, e você não pode fazer isso, Scott. Se está escrevendo sobre pessoas reais não pode mudar os pais delas (elas são frutos dos pais e do que acontece com elas) não pode mostrá-las fazendo coisas que não fariam. Você pode escrever sobre você ou sobre mim ou sobre Zelda ou Pauline ou Hadley ou Sara ou Gerald, mas tem de mantê-los como de fato são e mostrá-los fazendo o que realmente fariam. Não pode mudar ninguém. Inventar é ótimo, mas você não pode inventar nada que não aconteceria na realidade.

É isso que se espera de nós em nossos melhores momentos — inventar — mas inventar com tanta verdade que acabe mesmo acontecendo.

Droga, você toma uma liberdade com o passado e o futuro das pessoas que acabam resultando em histórias irreais. Você, que sabe escrever melhor do que ninguém — que diabo. Scott, pelo amor de Deus, escreva e escreva com verdade, doa a quem ou a que doer, mas não faça essas concessões bobas. Você escreveria um livro ótimo sobre o Gerald e a Sara, por exemplo, se soubesse o bastante sobre eles e, se fosse verdade, eles não ficariam chateados por muito tempo.

Há passagens maravilhosas e ninguém escreve uma história tão bem quanto você, mas você inventou demais nesta aqui. Sem necessidade.

Em primeiro lugar, eu sempre disse que você não sabe pensar. Tudo bem, vamos admitir que você sabe pensar. Mas digamos que não saiba; então você tem de escrever, inventar a partir do que você conhece e respeitar os antecedentes das pessoas. Em segundo lugar, faz tempo que você só escuta as respostas para suas próprias perguntas. E com toda a sua capacidade, não precisa fazer isso. É isso que seca um escritor (todos nós secamos. Não é ofensa nenhuma), não escutar. Tudo vem daí. Ver, escutar. Você vê muito bem. Mas parou de escutar.

É muito melhor do que eu estou dizendo. Mas não é tão bom quanto você é capaz de fazer.

Você pode estudar Clausewitz e economia e psicologia e não vai lhe servir de nada quando está escrevendo. Somos péssimos acrobatas, mas damos bons saltos, e existem todos aqueles acrobatas que não saltam.

Pelo amor de Deus, escreva sem se preocupar com o que os caras vão dizer ou se vai ser uma obra-prima ou não. Eu escrevo uma página de obra-prima para cada noventa e uma páginas de merda. Tento jogar a merda no lixo. Você acha que tem que publicar qualquer bosta para ganhar dinheiro para viver. Tudo bem, mas se você escrever bastante e escrever bem, como sabe, vai produzir a mesma quantidade de obras-primas (como dizemos em Yale). Você não pode pensar que vai sentar e escrever uma obra-prima, e se você se livrasse do Seldes e daqueles caras que quase o arruinaram e os pusesse na rua, como você bem pode, e deixasse os espectadores gritarem quando é bom e vaiarem quando não é, seria ótimo.

Esqueça sua tragédia pessoal. Nós todos estamos fodidos desde o começo e você em especial tem de sofrer muito para ser um escritor sério. Mas quando estiver sofrendo use o sofrimento — não trapaceie. Seja fiel a ele como um cientista — mas não pense que uma coisa é importante porque acontece com você ou com algum dos seus.

A essa altura não vou achar ruim se você me xingar. Nossa, é maravilhoso ensinar os outros a escrever, a viver, a morrer, etc.

Eu gostaria de conversar pessoalmente com você sóbrio. Você estava tão bêbado em N.Y. que não fomos a lugar algum. Você não é uma personagem trágica. Eu também não sou. Tudo o que somos é escritores e tudo o que temos de fazer é escrever. Você é a criatura que mais precisava de disciplina no trabalho e foi casar justamente com uma mulher que tem ciúmes do seu trabalho, que quer competir com você e está destruindo você. Não é fácil e eu achei que a Zelda era louca assim que a vi pela primeira vez e você complicou ainda mais as coisas se apaixonando por ela, e naturalmente você é um pinguço. Mas não é mais pinguço que o Joyce e a maioria dos bons escritores. Mas Scott, os bons escritores sempre voltam. Sempre. Agora você é duas vezes melhor do que quando se achava maravilhoso. Tudo o que você precisa fazer é escrever de verdade e não se preocupar como o que vai acontecer.

Vá em frente e escreva.

De qualquer modo eu gosto um bocado de você e queria ter a oportunidade de conversar com você de vez em quando. A gente passou bons momentos conversando. Lembra daquele cara que estava morrendo em Neuilly e nós fomos visitar? Ele esteve aqui no inverno. Canby Chambers, um cara danado de bom. Passou muito tempo com o Dos. Agora ele está muito bem, mas um ano atrás esteve muito doente. Como vai a Scotty? E a Zelda? A Pauline manda beijos. Estamos todos bem. Ela vai para Piggott passar duas semanas com o Patrick. Depois traz o Bumby. Nós pegamos um bom barco. É uma longa história. Difícil de escrever.

Seu amigo de sempre

Ernest.

// Escrito no envelope: E The Sun e o cinema? Alguma possibilidade? Não falei nada sobre as partes boas. Você sabe como são boas. Você tem razão quanto ao livro de contos. Eu queria ter continuado. Com o último que publiquei na Cosmopolitan teria sido um sucesso.

*tradução livre

Hemingway e Fitzgerald

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