A TECNOLOGIA É NEUTRA? | Gabi Guerra
Com a possibilidade de automatizar muito dos trabalhos que fazemos, de usar análise de dados para tomar decisões e substituir postos de trabalho por robôs o mito de uma tecnologia neutra se torna ainda mais perigoso.
Quando falo sobre isso, busco trazer um exemplo histórico que, ao meu ver, é bem emblemático. Vocês já ouviram falar da Cotton Gin?
Essa máquina foi criada em 1793 e o que ela faz, basicamente, é separar as fibras do algodão das sementes do algodão — processo que antes de sua criação era feito manualmente. Que maravilha, não?
Então, não sei.
Com essa invenção o mercado de algodão se tornou cada vez mais rentável e atrativo, e com a automatização dessa separação do algodão a pressão na produção e colheita se tornou grande. Estima-se que, com isso, o número de escravos trabalhando nas plantações aumentou de 700.000 em 1790 para 3.2 milhões em 1850 (fonte).
Em paralelo a isso, o que vemos é que a cotton gin é considerada um grande marco da revolução industrial e também considera-se que ela possibilitou a criação de diferentes tecnologias impactando até hoje no desenvolvimento da indústria têxtil.
Então eu pergunto: essa tecnologia é boa ou é ruim?
E acredito que essa é a pergunta que temos que nos fazer sobre todas as tecnologias que vemos emergindo por aí. E a resposta, na minha opinião, é sempre a mesma:
A tecnologia não é ruim, mas também não é boa. A tecnologia nunca é neutra. A tecnologia é ambígua.
Ou seja: não há neutralidade na tecnologia. E enxergar isso é muito importante. Quem tem o domínio das tecnologias que surgem que ditam o uso que elas terão. E é sobre isso que temos que discutir: quem detém o poder sobre as tecnologias que estão sendo criadas? quem cria essas novas tecnologias?
De acordo com a Oxfam e com o relatório do Credit Suisse 1% da população detém a mesma riqueza que os outros 99% — nível altíssimo de desigualdade econômica. O capital está cada vez mais concentrado na mão de poucos. Além disso, vemos exemplos claros de tecnologia e racismo (estudo sobre o uso de software para predizer futuros crimes continha preconceito contra negros). Sabemos também que, em 1974, 70% das/os alunas/os da faculdade de ciência da computação da USP eram mulheres e que em 2015 a presença de mulheres nesse curso resumia-se em 11%. Isso só pra começar a falar sobre as inúmeras desigualdades sociais que vemos refletidas nessa área.
E aí, pergunto: as promessas que emergem junto das novas tecnologias de melhorar e facilitar nossas vidas, proporcionar para as pessoas trabalhos mais criativos e menos mecânicos, auxiliar na criação de uma sociedade com menos desigualdades econômicas e sociais têm, de fato, se concretizado?
Precisamos, muito e urgentemente, falar sobre o papel da tecnologia na nossa sociedade. Precisamos urgentemente tirar essa ideia de neutralidade da nossa cabeça e entender a quem de fato as novas tecnologias têm servido.
Gabriela Guerra,
Diretora-Presidente da ThoughtWorks no Brasil e professora na Perestroika.